Cena
5 – À noite, um dia depois, na
sala da casa de Machado. Está sentado na poltrona, à espera.
Carolina – Conheci um tal de Policarpo Quaresma.
Machado – Carolina?... Que bom... Quem?
Carolina – Major Policarpo Quaresma, para ser mais exata. Muito animado, ele.
Parece criança. Ingênuo... Sua companhia tem me alegrado, ajudado a passar o
tempo.
Machado – Brasileiro?
Carolina – Sim. E daqui, do Rio de Janeiro.
Machado – Não conheci.
Carolina – Morreu, senão me engano, em 1894. Há 14 anos... Tinha menos de
cinqüenta anos.
Machado – Morreu de quê?
Carolina – Ué, Machado, quer agora falar de morte?
Machado – Curiosidade...
Carolina – Foi condenado à morte pelo governo de Floriano Peixoto.
Machado – Nunca gostei desse Floriano...
Carolina – Traidor da pátria... Diz que morreu injustamente. Na verdade, foi o que
menos fez enquanto vivo, diz: trair a pátria. Apaixonado pelo Brasil, ele era.
Machado – Triste fim.
Carolina – Muito. Foi muito ridicularizado, diz, por algumas idéias extravagantes.
Machado – Quais?
Carolina – Um dia, parece, escreveu um decreto para que se mudasse a nossa língua,
de português para o tupi-guarani.
(Machado de Assis
sorri um sorriso triste.)
Carolina – Engraçado, ele. Gosto dele.
Machado – Que bom...
Carolina – Tenho que ir.
Machado – Fale mais dos seus conhecidos do outro mundo
Carolina – Agora não. Depois.
Machado – Olhe para mim, pelo menos.
Carolina – Impossível.
Machado – Por favor... Apenas uma simples despedida... Necessito.
Carolina – Também queria, mas...
Machado – Tudo bem. Adeus.
Carolina – Até breve. Até amanhã.
Cena
6 – À noite, um dia depois, na
sala da casa de Machado. Três segundos após sentar-se na poltrona, chama:
Machado – Carolina?... Lembra-se daquele ano em que eu...
Carolina – Lembro...
Machado – Mesmo velhos, parecíamos crianças naquele dia.
Carolina – É verdade.
(Recordam-se...)
Cena 7 – 1900, oito anos antes. Carolina
se encontra sozinha em casa. No vidro do espelho, ela escreve, em cima, com uma
tinta líquida, o seguinte:
Em primeiro lugar, não há uma só alma, há duas...
(Depois, com os
mesmos dedos indicador e médio, Carolina, logo embaixo, continua)
...deu-me na veneta olhar para o espelho com o fim justamente de
achar-me dois
(Continua o
trabalho, as mãos e a roupa sujas da tinta preta)
Agora, é preciso saber que a alma exterior não é sempre a mesma
(E mais
abaixo, próximo à moldura envelhecida do espelho, a última frase)
...casos há, não raros, em que a perda da alma exterior implica a da
existência inteira (O espelho,
MACHADO DE ASSIS)
(Aproximadamente
uma hora depois, Machado de Assis chega. Ao olhar para o espelho, estranha. Olha
à esposa, querendo saber. O que é isso? Esses escritos?... – seus olhos e
atitudes parecem indagar.)
Carolina – Lembra-se? (ela pergunta).
Machado – De quê? (desentendido).
Carolina – De tudo isso que escrevi, que na verdade é
seu?
Machado – Sim. Mas... (ainda confuso).
Carolina – Uma homenagem a você.
(Ele ainda
não compreende. Carolina vai até o espelho. Logo abaixo à primeira frase (Em primeiro lugar, não há uma só alma, há
duas...), num espaço vazio entre a segunda, escreve)
Carolina e Machado
(E sorri.
Machado também sorri. Ambos sorriem, harmoniosos. Depois, ela, abaixo à segunda
(...deu-me na veneta olhar para o
espelho com o fim justamente de achar-me dois), completa)
E encontrei você
(Sorrisos.)
(Entre a
terceira (Agora, é preciso saber que a
alma exterior não é sempre a mesma) e
a quarta citação, preenche)
Meu amor,
saiba, é infinito
(E no final
(ela se ajoelha), perto da moldura e do chão, após (...casos há, não raros, em que a perda da alma exterior implica a da
existência inteira), termina)
Eu não desperdiçaria meu tempo distante de você
* Dia 26, aqui n'O BULE, confira a continuação da série Machado e Carolina.
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