(Fernanda Bastos)
Por Rogers Silva
A velha de olhar infantil disse que envelhecer dói, é dor que teoricamente em pouco
tempo acabará, mas é dor consciente, uma vez que não se têm mais ilusões
juvenis. Após dizer isso se foi, e ninguém jamais a viu novamente. Seus sapatos
foram encontrados a dois quilômetros de sua casa, onde morava sozinha. Estavam
sujos, cheirando a papoulas. O cego que
bradava luz olhou sem enxergar para a
menina de semblante triste e disse, se referindo à velha de olhar infantil: Conheci-a, nunca a vi – e sorriu –, porém
soube através de suas palavras que era triste. Você também – completou,
abaixando a cabeça. A menina de semblante
triste sorriu tristemente, olhou para o lado e viu uma criança-mulher que chorava muito. Na ocasião não estava chorando.
Disse a menina de semblante triste:
Sou eu, sou eu quando era criança. Depois se voltou para trás e caminhou. O cego que bradava luz, com a mão no
peito, direcionando os inúteis olhos para o céu, amaldiçoando-o, esbravejou:
luuuz!!! Então começou a chover. As lágrimas de Deus, achava o cego que bradava luz sob a chuva, se
estão assim em diagonal é porque Ele está de cabeça baixa, chorando pelo
projeto fracassado, o ser que se diz humano. A dor no peito, que em momento
algum dava trégua, persistia, e por isso achou melhor ir embora, voltar para casa. Talvez
desse um tiro na cabeça ou... sei lá. O
rapaz que não olhava nos olhos andava calmamente quando tropeçou no surdo e seus olhos de gato. Desculpas
mútuas e simultâneas. O surdo e os seus
olhos de gato ia à casa do mudo de
gestos enfáticos. Lá conversariam no idioma deles e se entenderiam como
seres normais, que falam e ouvem, jamais se entenderiam, visto que estes são
egoístas e disputam para ver quem fala mais e
menos ouve. A velha de olhar infantil,
por não agüentar a dor de envelhecer, resolveu que não deixaria os anos
passarem e então procurou caminhos que lá, no Campo em que não se envelhece, fossem. Dizem que vagou eternamente,
e vaga, pois eternamente não tem fim. E nunca envelheceu. A máxima Corpo jovem é corpo que funciona surgiu
do mito da velha de olhar infantil,
avó da menina de semblante triste,
que seria mãe da garota que perdeu a mãe.
Enquanto a Terra que gira gira,
conversam, no idioma deles, o surdo e
seus olhos de gato e o mudo de gestos
enfáticos, filho do homem que
detestava ser adulto. Pelas conversas resolvem que, amanhã mesmo, tentariam
descobrir a cura para a surdez e a mudez. Prometeram que quando descobrissem
não mais iriam conversar, talvez assim não ferissem os outros.
Outro que foi ferido e por isso
não olhava mais nos olhos de ninguém, pois provavelmente iria feri-lo, era o rapaz que não olhava nos olhos. Achava
que se voltasse a olhar nos olhos de alguém, e esse alguém fosse mulher,
ficaria como o adolescente que foi traído
pela primeira namorada, adolescente suicida. Este chorou durante dois dias
seguidos, sem parar, e suas lágrimas encheram duas bacias de prata. Quando as
lágrimas acabaram, decidiu ir para a estrada de ferro. Calmamente, mas com muito
medo, quando o trem apitava lá no horizonte, subiu nos trilhos. Anoitecia.
Ventava. A garota que foi acusada
injustamente, namorada do adolescente
que foi traído pela primeira namorada, nunca se recuperou da tragédia.
Jamais se alegrou por nada, a garota que
foi acusada injustamente. Em sua casa ninguém ria, ou sorria: nem sua irmã,
a garota que enlouqueceu por remorsos e
raiva, nem seu pai, o cego que
bradava luz, nem sua mãe, a
dona-de-casa tão-somente da casa. Quando estavam todos juntos, cada um ia
para seu quarto, cerrava as janelas e chorava, chorava por impotência. Por
raiva. Por remorso. Por nada. Um dia, quando um esboço de um sorriso se
mostrava no rosto da garota que foi
acusada injustamente, ela, confusa, decidiu que não, jamais iria sorrir.
Fora acusada injustamente. Não tinha direito de sorrir. Nunca mais. E assim
aconteceu, até a sua morte, de velhice, aos noventa e três anos. Sua mãe, a dona-de-casa tão-somente da casa, um
dia, quando as filhas tinham vinte e vinte dois anos, se perguntou o que tinha
feito, o que tinha construído na vida, e resolveu ir embora, abandonar o marido
cego e as filhas, cada um com seu problema, cada um com sua solidão. Deixou uma
carta ao marido. Não seria vista novamente. Pois viveria na Antártida, gelo lá
fora e aqui dentro, no seu coração. Morreria aos cinqüenta e seis anos por
conta de uma avalanche. Seu corpo nunca seria achado. Nem apodreceria. Enquanto
a menina de semblante triste
caminhava, teoricamente rumo à sua casa, teoricamente pois lá não chegaria, uma vez que se perderia nos olhos do surdo e seus olhos de gato, e se
apaixonaria loucamente, paixão que doía, o
jovem que era fissurado em carros, no seu quarto, inventava uma nave
espacial na qual iria para a lua, porque aqui se frustrava a todo o momento por
ver um carro e não poder comprá-lo. Seu pai, o homem que detestava ser adulto, melancólico por saber que nunca
mais seria menino, e raivoso, porque um dos seus filhos nascera mudo, agora se
desesperava ao ver o seu filho, o outro, dentro de uma nave dando adeus, gestos
lentos, entre espantado e feliz, indo embora, para onde, se perguntava, e se
perguntaria o tempo todo, pois jamais poderia imaginar que o filho inventor
iria para a lua, onde morreria. A garota
que enlouqueceu por remorsos e raiva não se conformava com o fato de o
homem que amava, o adolescente que foi
traído pela primeira namorada, ter
se apaixonado pela irmã e não por ela, por que,
e assim batia três vezes ao dia a cabeça contra a parede, em forma de protesto,
um protesto tímido. Seria sua sina: bater a cabeça, pelo resto da vida, vida
longa, de oitenta anos, na parede, parede dura.
O mudo de gestos enfáticos, além de não se dar bem com o pai, sofria por não
entenderem seus gestos, e então tentava, com ênfase nas mímicas, fazer as
pessoas o ouvirem, mas não conseguia, visto que entendiam apenas símbolos
matemáticos, nunca entenderiam um mudo de
gestos enfáticos louco por comunicação. Vinte anos tentando se comunicar, e
nada, quando resolveu abrir uma cova e se enterrar, anulando assim sua ânsia,
todavia estéril. O homem que detestava
ser adulto, seu pai, por sua vez, enquanto cantava uma ópera, com uma voz
linda, percebeu subitamente que a vida não valia a pena. De raiva, aumentou o
volume de sua voz, já potente. Aumentava. E quando atingiria a nota mais alta
da escala, seu cérebro estourou. De dentro saíram dores em forma de notas
musicais, a voarem, cada uma para um lado, distantes entre si, em direção ao
céu, um céu rosado. O rapaz que não
olhava nos olhos até então conseguiu não olhar para outros olhos a não ser
para aqueles responsáveis por sua sina, cabeça abaixada, quando, fisgado por um
pé feminino, instigado em saber de quem era o pé feminino, olhou medrosamente,
e olhava medrosamente, até que perdeu o fôlego por causa do olhar direcionado ao
seu e morreu, feliz, embora sua alma nunca fosse encontrada a fim de comprovar
que realmente morrera feliz. O olhar direcionado era da mulher pela qual
outrora se apaixonara e em quem encontrara e encontrou um amor transcendente e
mortal. A criança-mulher que chorava
muito cresceu e se transformou na menina
de semblante triste. Esta, por seu turno, se apaixonou, paixão genuína,
pelo surdo e seus olhos de gato. No
primeiro dia, metafisicamente fizeram amor sob um ipê-amarelo, flores a cair no
casal se amando, e daí nasceu a garota
que perdeu a mãe. A menina de
semblante triste não se conformava: como podia o amor dela pelo marido, o surdo e seus olhos de gato, doer
tanto? Todo amor dói? Como pode duas pessoas se amarem tanto, ao cúmulo da
anulação mútua? Como pode? Desiludida com as respostas foi para a beira do mar,
avistou uma gaivota lá longe, ínfimo branco sobreposto ao azul infinito,
sorriu, quão belo é o mundo, quão bela é a vida, meu Deus, mas quão angustiante
– e se
jogou. As ondas a levaram, para onde, se
perguntava a filha, a garota que perdeu a
mãe, para onde, se perguntava o marido, o surdo e seus olhos de gato. Juntos,
pai e filha, e sempre unidos, se abraçaram até o fim da vida, chorando, porém
se compadecendo, se completando, até o fim da vida, se perguntando, para onde, quando morreram coincidentemente no mesmo instante,
como prometeram. Enfim, sozinho no mundo, aos cento e trinta anos o cego que bradava luz, pela milésima
vez, o olhar ao alto, esbravejou com toda a sua força: luuuz!!! A luz saiu do
seu âmago. Voou. A luz era sua alma.
Um comentário:
"O surdo e os seus olhos de gato ia à casa do mudo de gestos enfáticos." Fantástico!
No Universo há linhas que nos levam ao outro lado da curva.
Abraço! ;)
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