Cena
8 – 1908, após as recordações.
Machado – Foi uma grande loucura (ainda aéreo).
Carolina – Sim, foi. Uma declaração de amor.
Machado – Fico feliz em saber que fui eu a razão dessa
loucura.
Carolina – Foi. Você.
Machado – Depois de velhos...
Carolina – Me sentia a garota mais viva desse mundo,
naquele dia...
Machado – Deu para perceber (sorri).
Carolina – Loucuras são necessárias à vida.
Machado – É verdade.
Carolina – Hoje conversamos demais.
Machado – Todo tempo com você é pouco.
Carolina – Mas tenho que ir. Infelizmente.
Machado – Sim, infelizmente (silêncio). Carolina?...
Cena
9 – À noite, um dia depois, na
sala da casa de Machado. Devagar chega à poltrona. Emborca e se apóia no seu
espaldar. Senta-se.
Machado – Me
chamou?...
Carolina – Ah,
sim.
Machado – Carolina?...
(pausa). Que brilho é esse?
Carolina – Há
lágrimas sobre seus olhos. É de onde vem o brilho.
Machado – Ah, mas...
(é interrompido).
Carolina – Dentro.
Caindo. Lágrimas.
Machado – Ou melhor,
lágrimas de alegria.
Carolina – De
tristeza... não seriam?
Machado – Estar
triste agora, perto de você?
Carolina – As
lágrimas, quando cheguei, nos seus olhos já estavam.
Machado – Saudade
sua.
Carolina – Seria
medo, não?
Machado – Impossível.
Carolina – ’Stou
aqui, não precisa ter medo.
Machado – Eu, um
velho, com medo... da morte. Irônico.
Carolina – Calma.
É desnecessário o seu medo. Não teria medo se s... (se interrompe).
Machado – Anh?, se o
quê?
Carolina – Releve
o que eu disser.
Machado – O que ia
dizer?... (abaixando a cabeça, rendido).
Carolina – Livre-se
do... (se interrompe novamente).
Esquece... não posso falar... A morte não existe (silêncio).
Machado – Incondicionalmente,
todo anjo tem esse brilho? (pergunta, contrariado,
mudando de assunto).
Carolina – Nem
todos.
Machado – Ah, não?...
Mas e eu, terei esse brilho dourado?
Carolina – Ah,
sim, o seu será maior.
Machado – Um brilho
dourado... (sussurra). Como sempre,
tentando me agradar.
Carolina – Garanto:
o seu será o maior.
Machado – Um
brilho... (imaginando). Obrigado,
então (para Carolina).
Carolina – Se
preocupa não (sorri). De nada. Tchau.
(Ouve-se um soluço.)
Machado – Tchau? Por
quê? Não vá agora.
Carolina – Ah,
Machado, o que eu não faço por você. Ficarei.
Machado – Xavier...
Não gostava do seu sobrenome... (murmura).
Sim, estou com medo (diz bruscamente).
Carolina – Amor,
não tenha medo.
Machado – Vem,
então, e me abraça.
Carolina – Infelizmente
não posso.
Machado – Eu
suplico, por favor.
Carolina – Realmente
não posso. Tenho que ir. Tchau.
Cena
10 – À noite, um dia depois,
na sala da casa de Machado. Faz horas que está sentado na poltrona.
Carolina – Abra as janelas.
Machado – Carolina?...
Estava te esperando.
Carolina – Que bom. Abra as
janelas. Deixe a brisa entrar. Está uma noite linda.
(Machado, muito fraco, levanta-se, se
direciona à janela, abre-a, volta e senta-se novamente.)
Machado – Melhor?
Carolina – Sim.
Machado – Tinha razão. Que
vento gostoso. Gostosíssimo, diria José Dias (sorri). Minha saúde não
permite, mas...
Carolina – Ar fresco é muito
bom para a saúde.
Machado – Tomara (silencia).
Por que este olhar carinhoso, plangente?
Carolina – À toa. Nem tudo
tem explicação.
Machado – Eu sei. Sei muito
bem disso. Infelizmente.
Carolina – Felizmente.
Felizmente... Os enigmas são a essência da vida.
Machado – Os enigmas são a
angústia da vida.
Carolina – São a razão de se
viver.
Machado – E de se suicidar.
Carolina – Que dia é hoje?
Machado – Embora anjo,
ainda preocupada com o tempo? (sorri, entre irônico e sereno).
Carolina – É tudo que temos.
Machado – Como assim?
Explique melhor.
Carolina – É uma longa
história.
Machado – Vinte e oito de setembro
de mil novecentos e oito.
Carolina – Meu Deus. Tenho
que ir.
Machado – Por quê? Fique
mais.
Carolina – Não posso.
Machado – Fique, por favor.
Carolina – Não posso.
Machado – Por que,
então?...
Carolina – O quê?
Machado – Das visitas. De
tudo!... (inconformado).
(Silêncio.)
Carolina – Não sabe o
sacrifício que foi em estar aqui com você.
Machado – Mas por quê?...
Carolina – Como regressar ao sol após descobrir o quão
delicioso é se deixar molhar pela chuva?... (rendida).
(Machado
a olha, intrigado.)
Carolina – Saiba que devagarzinho eu ia ostentando e
ornamentando a confusa idéia que eu propunha a mim mesma (num princípio de emoção), de identificar as íris daquele dia em
que percebi que seríamos sempre UM, independente da ocasião ou lugar. Nesse momento
eu acreditei que podia e queria. Embora eu estivesse num outro corpo, real e
odiosamente mentiroso (num mundo bonito mas que louva o ridículo), eu consegui
tocá-lo com a roupa celeste que eu vestia por cima da roupa terrena que você
vestia, já no fim da esperança (os olhos
se lacrimejando), mesmo sabendo que se eu fosse (viesse) embora acreditando
eu eu me alimentaria de abraços invisíveis no outro (este) mundo, infinitamente
bem mais leve, mas infelizmente me sobraria apenas a miragem com a qual só se
sabe sonhar. Ah tanto quis ter aquele seu remoto olhar que se interessava,
desconfiado e carinhoso, pelo meu sono! Parecia, e somente parecia (mais calma), hoje eu confesso, uma
ruidosa aproximação silenciosa na qual havia sorriso no rosto, cuidados e uma
restrita vicissitude enquadrada no círculo da lógica dos tempos (de todos os
tempos) que existirem e eu achei em um deles a possibilidade de gozar, e gozei.
Que mal há nisso? O diálogo do dia seguinte que nunca pôde e nunca poderia
acontecer eu quis eu quis e apesar do malogro certo, das intrigas e das leis
dos intrometidos de lá (inconformada)
eu quis e vim e acabei por me acostumar ao pior e (in) quieta demais mas enfim
rindo rindo porque nem aquele céu pretensioso conseguiu impedir meu propósito
efêmero. Como eu poderia excluir você (chorando)
ou ao menos diminuí-lo da minha vida se é (era) a sua louca e complexa mente,
diferente de todas as outras que vieram e virão, que me encanta(va) a ponto de
me fazer chorar? Por quê?... Porque me dei conta de que a minha vida após (bem
eu sei) seria difícil e triste sem os rumores da sua que é plena de vida (muito emocionada) pois amávamos a dança
o canto o girassol da infância da qual você sempre se lembra. Então escolhi o
sublime, sublime passageiro mas sublime. Não me importo se agora resta apenas a
possibilidade remota de juntar e desenhar as nossas estórias mesmo em ruínas
com a sábia arte de pintar no ar (e com os dedos) o que não pousa. (E por fim) Eu eu não desperdiçaria o
meu tempo /
distante de você.
(Silêncio.)
Carolina – Agora sim. Adeus, Machado.
Machado – Mas... (se
cala. Não havia ninguém. Olha ao espelho. Fecha os olhos. Vagarosamente. A si
mesmo murmura) Adeus. (Em seu rosto mulato, enrugado, duas lágrimas
escorrem).
(Desce o pano.)
Nenhum comentário:
Postar um comentário