Por Marcia Barbieri
Nunca tive medo da morte, achei que houvesse algo de branco e libertário nela. Luzes e corredores infinitos. Na minha infância a morte tinha uma tristeza glamourosa como nos filmes: guarda-chuvas, roupas pretas, uma garoa fina e o salmos com seu cajado e seus vales verdejantes. Agora, estava ali, diante de mim, um corpo grande e inchado para caber na fúria tempestuosa da vida, um sol bonito e brilhante de uma falsa primavera e um Cristo gordo que nega mostrar o sangue quente de suas feridas. Lembro que sempre havia uma atmosfera tenebrosa quando meu pai lustrava seus sapatos e cortava seus cabelos. A morte é um velho e cansado sapateiro, ele ruminava entre os dentes amarelos e sem frestas. Não havia nenhum tipo de falhas naquele homem. Eu observava-o com olhos gulosos de infância. Eram rituais que acompanhavam as mortes e sua boca, quase cotidianamente muda, procurava explicações para o obtuso, ele que era péssimo até mesmo com o óbvio. Sentia um cheiro amargo de flores e grama, milimetricamente plantada com a petulância própria dos vivos. Mas não sentia dor, isso era privilégio dos homens que já tinham passado dos quarenta, eu era nova demais para conhecer o gosto telúrico e aveludado da saudade. Aquele caixote de madeira afundava na boca da terra, enquanto mãos espremiam botões de rosas de todas as cores. E a morte me parecia ainda mais branca. A mortalha me fascinava, vestir-se para um jogo, no qual não há adversários nem juízes, apenas derrotados.
Do meu lado uma muda apalpava um lenço de pano, dele saiam centenas de pássaros negros e cobriam o teto do velório, enquanto isso ela flertava lascívia com o silêncio da revoada.
- Quem é?
- Nelson.
- Era seu marido?
- Não.
Poderia responder milhares de coisas para aquele trombadinha, no entanto, não disse nada. Afinal, ele sabia tanto da vida e tão pouco da morte, que nenhuma explicação seria plausível. Ele pisava os pés encardidos nos defuntos, violava suas covas, mas não sabia nada sobre morrer. A morte era uma multidão de gente falando de feitos estrangeiros, uma intrusa, eram corvos penetrando virgens.
9 comentários:
A morte também sempre me fascinou, mas a cor dela pra mim é como o musgo esverdeado da pequena fonte de um jardim abandonado...
Sempre leio teus contos e eles me fascinam tbm!...hehe XD
Bjão!
Caramba, fantástico!
Parabens pelo texto. Muito bom.
Uhú! Bela imagem da morte: "um velho e cansado sapateiro"... Grande Márcia!
"Gosto telúrico e aveludado da saudade", uma bela construção.
Uai, acabou?
Muito obrigada pelas leituras!!!!!
beijo a todos
Adorei,Márcia!
Gosto de ler as diferentes percepções da morte. Todas se fundem e se complementam.
Bom, já sabe,né? Maravilhoso!
Belíssimo!
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