Por Mauro Siqueira
“Não quero dormir”. Disse a pequena com o sorriso de janelinha. A Mamãe sabia o que ela queria; queria uma canção ou historinha. “O que você quer ouvir? A do Tio das Sandálias ou da Dona Pandinha?” De chiquinhas e pijama pulava na cama,... cama,... cama macia. Ela pedia: “Tio..., Tio..., Tio das Sandáias,... Tio das Sandáias...”
Com os olhinhos fechando, mas lutando; e o urso Osvaldo num abraço apertado; a voz da Mãe sumindo; no teto, estrelas de adesivos brilhando; o livro no finzinho, quando num grito pede: “Chega. Não quero mais...” “Agora só falta um tiquinho: ‘o Tio, que curioso era, sabia onde o calo apertava! Arrastou o grande armário atrás das suas sandálias, que voaram..., mas para a sua surpresa, uma aranha gigantesca soltou!...’”
Mamãe parou assustada, sua filha dera um grito e, agora, debaixo do cobertor chorava (e com força enforcava o urso Osvaldo). “Foi a aranha?” Ela só balançou a cabeça que sim. A Mãe sóabraçou a filha. “Não conto mais essa história, filhinha”. Ela beijou a menina e riu, fez-lhe cosquinhas e a janelinha apareceu de novo. Ela beijou e beijou. “Não precisa ter medo...” “Como você sabe?” “Por que já fui do seu tamanho”. A janelinha estava toda aberta, mas ainda preocupada. “Mas se ele voltar?” “Quem?” “O Aranha-grande” A Mãe não entendia e achou melhor repetir, era tarde: “Não precisa ter medo, não vai acontecer nada; ela não vai te pegar.”
Acordou espantada como das outras vezes, os olhos demoraram para se acostumar com o negror do seu quarto, ora rosa. Como antes, ela sabia: “não estou sozinha”, ela parou de respirar para ouvir... em vão. Segurava o urso Osvaldo, quis gritar. Mergulhou na sua cama querendo afundar nela...
Engolfado na escuridão, escondido num canto, cheirando o medo; sua respiração era sólida. Estava do lado da janela (fechada), do lado da cama, como antes fizera.
E não estava sozinha. Ela tentou gritar. Começou a chorar de mansinho: era o Aranha-grande que vinha para jantar. Sentiu o estalo da cama, seus braços de pêlos, suas pernas de pêlos, seu rosto de pêlos pelo o seu.
Um gosto amargo.
Ela sabia gritar, mas como? Não tinha força.
Estava com raiva da mamãe.
O Aranha-grande veio para jantar hoje.
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>>> Publicado originalmente no livro De vermes e outros animais rastejantes (Multifoco, 2008) e na edição 18 da Revista Ficções
>>> E no dia 16 o episódio 05 da Balada Imprudente de Alice e Alex.
6 comentários:
Vixi, Mauro!! Isso é complicado, porque dá muito o que entender, como vc já deve ter previsto!! E eu por ser mulher, fico puta da vida com essas "Aranhas".Vc é muito corajoso de escrever isso rsrs ficou inocente, mas completamente sem vergonha!
Sensacional! Refinadamente sarcástico.
Eu entendi tanta coisa, inventei alguns finais... mas algo me tocou:
“Como você sabe?”
“Por que já fui do seu tamanho”
Acho que eu sempre sonhei com isso quando menina... uma segurança... mesmo com o maior dos medos do HOMEM ARANHA.
Beijos querido!
Adoro te ler!
Sutil demais. Dá o que pensar.
Wow velho. Quantos cruzamentos: do fantástico-fantástico ao ultrarealismo cru.
Aracnofobicamente complexo, Mauro. Eu nem preciso citar todas as possíveis interpretações e por que não, já que é a mente de uma criança - cheia de mecanismos de defesa fantasiosos -, citar que todas essas interpretações de aracnosas se cruzam na mente dela como um mundo só.
Abração velho.
Fico na espera de Alice e Alex.
Michele: O menor dos problemas é ficar "sem vergonha"... o maior é a Aranha!
Ricardo: Valeu, está quase do nível dos seus!.
Fer e Geraldo:Gosto desse conto pois ele da margem para muitas leituras. As manifestas e principalmente as latentes.
André: sempre no cerne, hein? Mecanismos de defesa... transposições... metaforizações. O caminho é esse mesmo. Esquece o Kelsen e se joga psique!
Abraço a todos e grato pelos comentários.
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