Por Claudio Parreira
MARIANNA
TUDO ACONTECE AO CONTRÁRIO em Marianna: os galos cantam ao cair da noite, os carros avançam de marcha-à-ré e sempre chove pra cima. Quando chove.
Apesar disso, a vida em Marianna é considerada normal por todo mundo. Os relojoeiros atrasam os relógios com naturalidade e as cenouras crescem todas com suas raízes voltadas para o sol, que no verão surge sempre à meia-noite.
Quando nascem, os velhos não dão trabalho algum: sabem todos que em breve chegarão à idade adulta, e que depois disso uma adolescência repleta de surpresas e delícias lhes está reservada. Este, aliás, é o maior orgulho da cidade: o fim da velhice só traz alegrias em Marianna.
O único problema da cidade são os descontentes. Sim, há descontentes em Marianna, aos milhares. Eles reclamam de tudo, não concordam com nada e acham que a vida de verdade está lá fora, além dos muros que cercam a cidade. Por conta disso, a cada ano, muitos partem. E não se dão conta do óbvio: partir de Marianna, por causa da própria natureza da cidade, significa voltar a ela.
FOME
OS CARAS ESTÃO LÁ FORA há três semanas. Eles se revezam, mas isso dá no mesmo: tanto faz se são gordos hoje e magros amanhã. O que importa mesmo é a atitude – e a atitude, esta sim, não muda.
— Pra dentro! — foi o que eles falaram quando tentamos sair. Não protestamos, não queríamos confusão. Voltamos pra casa e ligamos a TV. Ajudaria a passar o tempo.
Uma, duas semanas, três. A TV já não tem mais graça – nada mais tem graça, aliás. Minha mulher, percebo agora, é insuportável. Também eu devo parecer insuportável a ela. Mas somos tolerantes, fomos educados pra isso. Tolerância, porém, é um exercício desgastante quando se sente fome. Agora, neste exato momento em que escrevo, sei que eles ainda estão lá fora, que continuarão lá fora, e sei também que toda a comida da casa já se acabou. Não demorará muito para essa nossa tolerância educada se transformar em simples e primitivo apetite. Eu conheço a fúria da minha mulher quando faminta: ela é capaz de qualquer coisa – qualquer coisa mesmo! Por isso já escondi as facas. E trago comigo, em segredo, um velho canivete que pertenceu ao meu pai. O amor é lindo, dizem, mas nunca se sabe.
A RELATIVIDADE DAS LÁGRIMAS
ELA JÁ DESPERTA com o rosto banhado em lágrimas. Desolada, a família lamenta:
— Ó, minha filha — diz a mãe.
— Ó, minha filha — diz o pai.
— Ó, minha irmã — dizem os irmãos.
Os tios, avós, et cetera também se desesperam com o desespero da menina, também se lamentam:
— Ó, minha menina — dizem.
A menina, no entanto, pouco se ocupa dos lamentos da família. Tem seus próprios interesses – e por isso chora. Antes de mais nada, agrada-lhe profundamente o sabor das lágrimas, o tempero balanceado do sal que lhe escorre pelo rosto. Ela é, sem que ninguém suspeite, uma artista, uma alminha dotada de extremo senso poético. Que coisa mais linda amanhecer e anoitecer aos prantos!, pensa ela, que alegria inigualável é chorar! A sua família, contudo, pouco vai além das aparências: quem chora sofre, pensam, categóricos, os pais irmãos et cetera. À noite, no escondido dos seus lençóis, choram de verdade, preocupados, enquanto a menina descansa tranqüilamente para mais um dia de lágrimas.
.
10 comentários:
Marianna é o flerte com Calvino e Cortázar num só texto - tanto podia estar em 'Cidades Invisíveis' quanto em 'História de Cronópios e de Famas' Parabéns!
PÔ, Mauro, na mosca! Escrevi Marianna durante a primeira leitura de As Cidades Invisíveis, e neste livro percebi diversos ecos de Cronópios & Famas.
Cheguei mesmo a considerar viagem minha estabelecer essa relação, mas este seu comentário só veio a confirmar.
Brigadão, cara!
Parreira,
Atrás de você, seguindo seus passos, já estive em lugares estronhos e esquésitos; já li sobre a vida e Rien - a morte. Agora o encontro no café quente e cheiroso que o bule contém. Obrigado pelo mapa destes caminhos desconhecidos, parabéns por sua textualidade eclética, que fica bem em tantas formas.
Grande Abraço
Meu bom Parreira, três contextualizadas histórias: as marianas, a fome, as lágrimas. Não sequenciais nelas mesmas, mas nas do leitor, como eu: sua simplicidade decorre do que conhece; suas histórias do que desconhecemos. Temos todos essa aparência prisional de quem envelhece, mesmo em lágrimas. Como sempre, parabéns. Abraços, Pedro.
E além disso fui previdente :D
http://www.facebook.com/pages/O-Bule/316933804866?ref=mf
Divulguei assim ontem no FaceBule
Queridos Pedro & Weiss: conheço vcs de outras histórias e garanto: O BULE é um caldeirão ávido pela qualidade. É muito satisfatório quando alguém salta dos comentários para a pagina principal. Que tar?
Agradeço muitíssimo os comentários e espero contar com a presença de vcs brevemente.
Parreira
Ler você é sempre um exercício leve e prazeroso de gratas descobertas.
Beijos e sucesso, sempre!
Márcia
É sempre divertido e instigante ler teus textos, meu caro Parreira. Parabéns e sucesso.
Abraço,
César Birindelli
Grande César!
Brigadão pela visita & comentário!
ei, curti muito o 'fome'. o 'marianna', além do nome, não tem nada de 'mulheres' :D
Postar um comentário